“Toda demanda é demanda de amor
Todo desejo é desejo de reconhecimento.”
(Lacan)
A entidade familiar é entendida pelo Direito das Famílias moderno como agrupamento social unido essencialmente em laços de afetividade.
E o que seria afetividade?
A palavra afeto deriva do latim “afficere, afectum”, que significa tocar, comover o espírito, unir, ou até mesmo adoecer. Seu significado mais preciso, no entanto, liga-se a noção de afecção, que deriva do latim “afficere ad actio”, onde o sujeito se fixa, onde o sujeito se liga.
Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus Maluf conceitua a afetividade como a relação de carinho ou cuidado que se tem com alguém íntimo ou querido, como um estado psicológico que permite ao ser humano demonstrar seus sentimentos e emoções a outrem. (Direito das Famílias, Amor e Bioética. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. p.18).
E a parentalidade socioafetiva?
“Parentalidade socioafetiva é o vínculo de parentesco civil entre pessoas que não possuem um vínculo biológico, mas que vivem como se parentes fossem, em decorrência do forte vínculo afetivo existente entre elas.” (Christiano Cassettari em “Multiparentalidade e Parentalidade Socioafetiva: Efeitos Jurídicos.” 3a Edição. Editora Atlas.)Temos a filiação/parentalidade socioafetiva, por exemplo, quando um padrasto passa a criar um(a) enteado(a) como filho, cuidando-lhe material e afetivamente, dando-lhe apoio, assistência moral e educacional irrestrita, de modo que, tanto publicamente (na rua, no condomínio, escola, clube, etc) quanto na esfera privada, exista uma relação paterno/filial.
O enteado reconhece o padrasto como pai, e este, reconhece-o como filho.
É possível ocorrer a filiação socioafetiva mesmo quando a criança/adolescente tenha a figura do pai biológico presente, embora seja mais comum em casos de abandono afetivo paterno, ou de um exercício de paternagem distanciado afetivamente.
Quais são os requisitos para a configuração/reconhecimento jurídico da filiação socioafetiva?
1- Existência de laço de afetividade.
Este forte vínculo afetivo deve decorre da convivência sólida, harmoniosa, marcada pelo zelo e cuidado.
2- A posse de estado de filho(a):
A posse de estado de filho(a) constitui-se pela reunião de circunstâncias capazes de exteriorizar a condição de filho legítimo que alguém cria. Dois requisitos são essenciais para caracterizá-la:
a) tractatus : que diz respeito ao tratamento contínuo de filho legítimo. É necessário que haja o chamamento de filho e aceitação do chamamento de pai;
b) fama – alude ao reconhecimento constante, pelo padrasto/pai e pela sociedade, como filho legítimo. É preciso que a criança/adolescente tenha uma relação afetiva íntima e duradoura com o pai afetivo, na condição de filho legítimo, diante de terceiros.
Onde encontramos garantias legais para o reconhecimento da filiação socioafetiva?
O parentesco biológico não é a única forma admitida no ordenamento jurídico brasileiro.
O artigo 1.593 do Código Civil, que apresenta as espécies de parentesco, esclarece que ele pode resultar tanto consanguinidade quanto de outra origem:
Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem.
Por permitir “outra origem de parentesco”, o artigo 1.593 autoriza que se reconheça a parentalidade socioafetiva como forma de parentesco. É desta forma que juristas e tribunais vêm interpretando o artigo: abrangendo também as relações de parentesco socioafetivo.Inclusive já existe um Enunciado do Conselho da Justiça Federal que, interpretando-o, afirma: “A posse de estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil.” (Enunciado 256 do CJF)
Estes enunciados não têm força de lei, mas apontam caminhos firmes para a interpretação de dispositivos legais, por isso costumam servir de referência no trabalho dos juízes/juízas.
Quando se consolida o reconhecimento da filiação socioafetiva, especialmente concomitantemente com a biológica (multiparentalidade) na comunidade jurídica?
Isto ocorre em 2016, quando o STF julgou o Recurso Extraordinário n° 8998.060.
Analisou-se o caso em que um pai biológico recorria contra acórdão que estabeleceu sua paternidade, com efeitos patrimoniais, independentemente do vínculo que sua filha possuía com o pai socioafetivo.
Como assim?
Uma menina foi adotada pelo padrasto quando não tinha conhecimento sobre sua origem biológica paterna. Quando conheceu seu pai por consagüinidade, pleiteou o reconhecimento da paternidade. A justiça concedeu, mas o pai biológico não aceitava e recorreu até o STF, alegando que ela já tinha um pai socioafetivo reconhecido e que estaria apenas perseguindo vantagens patrimoniais. (Leia-se: direito à herança).O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que a existência de paternidade socioafetiva não exime de responsabilidade o pai biológico e deu ganho de causa para a filha.
Um dos ministros chegou a afirmar a atitude do pai biológico revelava um “cinismo manifesto”.Este julgamento consagrou o acolhimento da possibilidade da multiplicidade de vínculos familiares (biológica e socioafetiva), ao permitir a inscrição do nome do segundo pai, o biológico, na certidão.
Esta decisão foi revolucionária pois se propôs a fixação de tese de repercussão geral. O que significa dizer que a decisão proveniente dessa análise deve ser aplicada posteriormente pelas instâncias inferiores, em casos semelhantes.
Além disso, reconheceu a impossibilidade de deixar sem proteção legal os arranjos familiares que não se encaixam nos modelos pré-concebidos pelo legislador, por mera omissão. Demonstrou o compromisso da Justiça com a superação dos entraves legais ao pleno desenvolvimento das famílias construídas pelas relações afetivas.Na continuação desse artigo sobre o tema, explicarei mais sobre a relevância jurídica e social desta decisão, bem como as hipóteses em que se admite o registro da paternidade socioafetiva em cartório sem recorrer ao Judiciário e os documentos, fatos que comprovam a sua existência.Até lá!
*Por: Mariana Regis. Advogada especializada em Direito das Famílias e apaixonada pelo tema!