Brincadeira também é cultura
… Isto porque a gente havia que fabricar os nossos brinquedos: eram boizinhos de osso, bolas de meia, automóveis de lata. Também a gente fazia de conta que sapo é boi de cela e viajava de sapo. Outra era ouvir nas conchas as origens do mundo…
O poeta pantaneiro Manoel de Barros encontra nos seus achadouros de infância o menino que inventava, imaginava, invertia a ordem das coisas, brincando e aprendendo curiosamente a ser, na relação com a natureza.
Sapos, ossos, meias e latas transformam-se em brinquedos, personagens, cenários e histórias nas mãos do menino Manoel que, quando cresceu, continuou fazendo peraltagens com as palavras. Certamente, se buscarmos nos nossos achadouros de infância, também reencontraremos nossas peraltagens e invenções inusitadas, muito peculiares às crianças e às suas formas próprias de pensar, sentir e agir.
A brincadeira cria para a criança muitas “janelas” para compreender o mundo e a si mesma. No brincar, as coisas podem ser outras, o mundo vira de ponta-cabeça, permitindo à criança se descolar da realidade imediata e transitar por outros tempos e lugares, ser muitos outros e fazer muitas outras coisas com a ajuda de gestos, palavras e artefatos, ser autora de suas histórias. No faz-de-conta, pode ser pai, mãe, bebê, bruxo, fada, príncipe, sapo, cachorro, trem, condutor, guerreiro, super-herói… São tantas possibilidades quanto é permitido que as crianças imaginem e ajam guiadas pela imaginação, pelos significados criados, combinados e partilhados com os parceiros de brincadeira. Sendo esses outros, experimentando outros tempos, lugares e relações, as crianças aprendem a olhar o mundo e a si mesma de outras perspectivas.
Brincadeira é cultura e cria cultura
Ao brincar, a criança não apenas expressa e comunica suas experiências, mas as reelabora, se reconhecendo como sujeito pertencente a um determinado contexto cultural, marcado por práticas sociais e culturais, relações sociais, valores e artefatos específicos. O brincar é, portanto, uma experiência do campo da cultura, através da qual valores, habilidades, conhecimentos e formas de participação social são constituídos e reinventados pela ação coletiva das crianças.
A brincadeira é, em si mesma,um fenômeno da cultura, uma vez que reúne um conjunto de práticas, conhecimentos e artefatos construídos e compartilhados pelos sujeitos nos contextos históricos e sociais em que se inserem. A criança, desde que nasce, pode acessar um acervo de brincadeiras e brinquedos, através das interações com a família e as comunidades onde vai se inserindo, por exemplo, a escolar. Esse acervo e as práticas vivenciadas de brincadeiras variam conforme o contexto cultural e histórico em que as crianças se encontram. E permitem, ao serem apropriados pelas crianças, que brinquem juntas: de esconde-esconde, amarelinha, polícia e ladrão, piques, entre muitas outras possibilidades.
Há, ainda, uma outra relação entre brincadeira e cultura, revelada nos últimos anos por estudos no campo da sociologia e da antropologia: o brincar é um dos pilares da constituição das culturas da infância. Mas o que seriam culturas infantis? As crianças criam cultura?
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As crianças que convivem cotidianamente umas com as outras, constroem, nas suas brincadeiras e relações de grupo, significados muito próprios e comuns, além de formas coletivas de agir e brincar que as identificam como um grupo que vive determinados espaços e tempos comuns. Juntas, criam um repertório de brincadeiras e referências culturais que compõem o que chamamos de cultura lúdica infantil, a qual tanto permite que brinquem juntas,com também que criem novas formas de brincar e de ver o mundo.
É incrível observar como as crianças, desenvolvem com autonomia suas ações e interações nas brincadeiras em grupo, planejando em conjunto os planos imaginários, os papéis e ações a eles associadas, selecionando os objetos e compondo o cenário da brincadeira. Tudo isso envolve aspectos complexos como definição de regras, negociação, resolução de conflitos, compartilhamento de ideias e participação.
Já experimentaram observar com mais cuidado as brincadeiras infantis? Muitos adultos se surpreendem com as crianças, quando olham-nas com mais atenção!
Hoje falamos sobre as relações entre brincadeira e cultura, mas sabemos que a brincadeira tem outras dimensões muito importantes, como por exemplo a sua relação com o desenvolvimento infantil. Na verdade, essa é a dimensão mais estudada e conhecida do brincar. Mas essa discussão fica para outro dia.
Terminamos aqui com uma questão: os espaços e tempos cotidianos das nossas crianças, em casa e na escola, têm permitido essa relação entre brincadeira e cultura? Sim? Não? Por que?
Autores: Angela Meyer Borba e Maria Inês Delorme, adaptação do artigo “A brincadeira como experiência de cultura”, de Angela Borba, publicado em Corsino, P (Org.). Educação Infantil: cotidiano e políticas. São Paulo: Autores Associados, 2009.
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