Porque o fim da violência contra a mulher também é um chamado aos homens.

(imagem gerada por IA)

Quando falamos na campanha de ativismo pelo fim da violência contra a mulher, qual é a primeira imagem que vem à sua mente? Para muitos homens, a resposta é um “não” automático: “Eu não faço isso”.

No entanto, a campanha global de ativismo nos convida a ir além. Ela nos chamam para trocar o “não fui eu” pela pergunta: “Como posso ser um agente de mudança?”.

Este artigo contextualiza a origem dessa campanha, por que ela é crucial no Brasil e qual é o potencial transformador do papel dos homens nessa jornada.

1. A Campanha Global: Os “Dias de Ativismo”

Globalmente, a ONU Mulheres coordena a campanha anual “Una-se: pelo Fim da Violência contra as Meninas e Mulheres”. O objetivo é aumentar a conscientização e impulsionar ações para prevenir e eliminar esse problema.

A principal mobilização desta campanha são os “16 Dias de Ativismo”, que começam em 25 de novembro (Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra a Mulher) e terminam em 10 de dezembro (Dia Internacional dos Direitos Humanos). A escolha dessas datas é simbólica, ligando diretamente a violência de gênero à violação dos direitos humanos.

2. A Conquista Brasileira: Os “21 Dias de Ativismo”

No Brasil, a campanha foi estrategicamente ampliada para 21 Dias de Ativismo. Por quê?

Para incluir o Dia da Consciência Negra (20 de novembro) como marco inicial.

Essa não foi uma mudança aleatória. Foi uma conquista crucial dos movimentos feministas negros no Brasil para destacar a interseccionalidade da violência. Mulheres negras, que compõem a maior parte da população feminina do país, enfrentam um risco duplo, sendo alvo tanto do machismo estrutural quanto do racismo. Reconhecer isso desde o primeiro dia da campanha é fundamental para entender a complexidade do problema em nosso território.

3. O Laço Branco: Por que um dia focado nos homens?

Dentro dessa jornada, há uma data chave: 6 de dezembro, o Dia Nacional de Mobilização dos Homens pelo Fim da Violência contra as Mulheres.

Essa data é também conhecida como a “Campanha do Laço Branco” e sua origem é um marco na transformação do papel masculino. Ela não foi criada por mulheres para culpar os homens; ela foi criada por homens para chamar outros homens à responsabilidade.

Em 6 de dezembro de 1989, um homem armado invadiu a Escola Politécnica de Montreal, no Canadá. Ele separou os homens das mulheres e assassinou 14 estudantes, declarando que seu alvo eram “feministas”.

A tragédia chocou o país. Em resposta, um grupo de homens canadenses percebeu que o silêncio masculino diante da violência cometida por outros homens era parte do problema. Eles criaram a Campanha do Laço Branco, com os homens se comprometendo publicamente a:

“Jamais cometer violência contra mulheres e não fechar os olhos para essa violência quando ela ocorrer.”

Portanto, este dia não é sobre culpa. É sobre responsabilidade e aliados. É um chamado para que os homens reconheçam seu privilégio e usem sua posição para ativamente desmontar a cultura que permite a violência.

4. Do Social ao Prático: O “Espectro da Violência”

Essa violência que a campanha busca combater não se resume à agressão física. Ela começa muito antes, em atitudes que muitas vezes são normalizadas no dia a dia, seja em casa, entre amigos ou no ambiente de trabalho.

É o que chamamos de “espectro da violência”.

Na base desse espectro, antes das agressões explícitas, estão as microviolências: padrões contínuos de desrespeito e depreciação que, isoladamente, podem parecer “pequenos”, mas que juntos criam uma cultura de insegurança e exclusão.

É o que acontece quando:

  • Ideias são desvalorizadas: Um colega constantemente interrompe uma mulher em uma reunião (manterrupting) ou menospreza suas ideias. Minutos depois, outro homem repete a mesma sugestão e é aplaudido.
  • O silêncio é cúmplice: Uma piada ou comentário depreciativo sobre a aparência ou capacidade de uma mulher é contado em um grupo, e os demais homens presentes, mesmo desconfortáveis, escolhem compactuar com o silêncio, validando o agressor.
  • O poder é mal utilizado: Em ambientes dominados por homens, as estruturas de poder são moldadas por uma cultura machista. Isso se traduz em assédio moral ou sexual, onde a impunidade desestimula denúncias e perpetua o problema.
  • Comportamentos são normalizados: A masculinidade tradicional é associada de forma equivocada à demonstração de autoridade e controle. A agressividade e a violência passam a ser vistas como uma forma distorcida de validar o poder, desrespeitando os outros.

Essas são as microviolências que criam uma cultura de insegurança e desrespeito.

Combater essas atitudes é o primeiro e mais importante passo. Não é papel apenas das mulheres apontar esses erros; é um dever de todos, e especialmente dos homens em posição de aliados, intervir e “confrontar seus iguais”.

A transformação cultural que buscamos exige que homens deixem a posição de espectadores passivos e se tornem agentes ativos da mudança. Assumir essa responsabilidade não é “ajudar” as mulheres; é fazer a sua parte para construir um mundo mais justo e seguro para todos.

5. Saindo da Teoria: Ações Práticas para Homens Aliados

Reconhecer o problema é o primeiro passo, mas a mudança real só acontece na ação. Muitos homens querem ajudar, mas não sabem como. O “aliado” não é um título que se ostenta, é um verbo que se pratica diariamente. Aqui estão passos concretos para transformar a intenção em impacto:

  • Quebre o “Pacto da Broderagem”: A cumplicidade masculina (ou brotherhood) muitas vezes protege o agressor. Se um amigo envia pornografia de vingança, faz uma piada machista ou assedia uma mulher na balada, não ria e não se cale. Diga: “Cara, isso não é legal” ou “Isso é desrespeitoso”. O constrangimento do silêncio valida a violência; a sua voz a interrompe.
  • Pratique a Escuta Ativa (Sem Mansplaining): Quando uma mulher relatar uma experiência de discriminação ou medo, a tendência masculina é tentar explicar a situação racionalmente ou oferecer uma solução imediata. Resista. Apenas escute e valide a dor dela. Não diga “nem todo homem”; pergunte “o que posso fazer para ajudar?”.
  • Divida a Carga Mental: A violência doméstica também se manifesta na exaustão da mulher. Em casa, não seja o “ajudante”. Assuma a responsabilidade completa por tarefas e pelo planejamento familiar. Isso equilibra as relações de poder dentro do lar.
  • Use sua Voz para Amplificar, não para Sobrepor: Em reuniões ou espaços públicos, se perceber que uma mulher foi interrompida, intervenha: “Gostaria de ouvir o final do raciocínio dela”. Se uma ideia dela for apropriada por outro, dê o crédito: “Como a fulana disse anteriormente…”.

6. O Papel Social das Empresas: Muito Além do Lucro

As empresas não são ilhas; elas são microcosmos da sociedade. Se a cultura do estupro e do machismo existe lá fora, ela inevitavelmente entra pelos portões da empresa. Por isso, o setor corporativo tem um dever cívico e social — que vai além do ESG (Environmental, Social, and Governance) — de atuar como um agente de transformação.

Como as empresas podem (e devem) agir:

  • Tolerância Zero e Canais Seguros: Não basta ter um código de conduta na parede. É preciso ter canais de denúncia que garantam anonimato e, principalmente, apuração rigorosa. O assédio sexual ou moral deve ser punido exemplarmente, independentemente do cargo do agressor. A impunidade interna é o maior incentivo à reincidência.
  • Acolhimento às Vítimas: Muitas vezes, a queda de produtividade de uma colaboradora é reflexo de violência doméstica. Em vez de demitir, a empresa deve acolher. Isso inclui oferecer suporte jurídico, psicológico ou flexibilidade de horários para que ela possa reorganizar sua vida e sair do ciclo de violência.
  • Educação Letrada: Palestras pontuais em datas comemorativas são importantes, mas insuficientes. É necessário letramento contínuo sobre vieses inconscientes, masculinidade tóxica e diversidade. Treinar a liderança masculina para identificar e corrigir comportamentos machistas na equipe é vital.
  • Equidade Salarial e de Liderança: A violência econômica é uma das formas mais eficazes de prender mulheres em situações abusivas. Garantir que mulheres recebam o mesmo que homens e ocupem cargos de decisão dá a elas autonomia financeira e poder social, reduzindo sua vulnerabilidade.

Conclusão: Um Convite à Coragem

Os “21 Dias de Ativismo” e a “Campanha do Laço Branco” não são um ataque aos homens, mas sim um convite para que eles se libertem de um modelo de masculinidade que fere os outros e adoece a si mesmos. Para os homens, o desafio está lançado: tenham a coragem de confrontar outros homens. Tenham a coragem de serem vulneráveis. Para as empresas, o chamado é pela responsabilidade: usem sua influência para moldar uma cultura onde o respeito não seja um benefício, mas a norma inegociável. O fim da violência contra a mulher não será alcançado apenas por mulheres gritando por socorro, mas por uma sociedade inteira — homens e instituições incluídos — decidindo que não aceitarão menos do que a dignidade plena para todas.